sábado, 4 de agosto de 2007

A catástrofe de Chernobyl vinte Um anos

depois


SE QUISERMOS evitar uma catástrofe climática maior, deveremos, imperativamente, impedir-nos de extrair do subsolo mais de um terço dos recursos fósseis, petróleo, gás e carvão, que ainda estão nele enterrados. Mas nunca o mercado de energia será capaz de um tal esforço de autolimitação. Os mercados existem apenas para administrar recursos escassos. Ora, os recursos fósseis não estão ainda escassos, eles permanecem fortemente superabundantes. Repito, temos recursos fósseis em quantidade três vezes maior do que aquela que temos o direito de utilizar; daí, o apocalipse climático.

O lobby nuclear mundial sabe disso, e se ele age, tanto pública como secretamente, de modo a fazer que as atenções se voltem para a ameaça ao meio ambiente, é porque aí vê a grande chance do nuclear civil. Pergunto se é verdadeiramente essa a escolha que nos resta fazer: o envenenamento do planeta ou uma espécie de ditadura da técnica? E coloco a questão de fundo: as condições que fazem a energia nuclear segura são compatíveis com as regras de base que fundam uma sociedade democrática, transparente e justa? A gestão da catástrofe de Chernobyl nos faz duvidar disso.

Avaliação ou despistamento?

Se for constatado que a opacidade, a dissimulação e a mentira são condições necessárias para garantir uma "imagem de segurança", então a equação energética ficará sem solução.

O que aterroriza mais no caso de Chernobyl é que a presumida competência dos experts não alcance uma qualidade de pensamento à altura dos grandes problemas que ela coloca para a sociedade. A tecnocracia, que acusa facilmente seus adversários de cair no irracional e no obscurantismo, carece da seriedade e daquele discernimento mínimo que temos o direito de esperar de cidadãos que põem em risco a possibilidade mesma de uma vida digna e segura neste planeta. Uma competência técnica que não repensa o que diz e o que deixa fazer, eis o supremo perigo.

A avaliação dos efeitos de uma catástrofe nuclear sobre a saúde humana recorre a três métodos:

• a observação direta;

• a pesquisa epidemiológica;

• a modelização.

Os prestadores de socorro das primeiras horas receberam em Chernobyl doses tão altas que sua morte pode ser atribuída com toda certeza ao acidente. Mas, para todas as pessoas que sofreram, na hora ou em seguida, doses médias ou fracas, as coisas são mais complexas. Em princípio, uma pesquisa epidemiológica poderia avaliar, retrospectivamente, o excesso das doenças malignas que afetaram as populações atingidas sobre a taxa normalmente esperada. Mas essa pesquisa não pôde ser feita corretamente em Chernobyl, pois as populações mais afetadas, os bombeiros e as pessoas que puderam ser deslocadas dispersaram-se pelo território da União Soviética, e nenhum acompanhamento pôde ser efetuado.

Resta a modelização que substituiu a pesquisa epidemiológica, essa mesma modelização a que se deve, de todo modo, recorrer para estimar os mortos futuros.

O modelo usado pelas autoridades internacionais de radioproteção é um modelo linear sem limiar. Supõe-se que o efeito sobre a morbidez e a mortalidade seja proporcional à dose recebida, mesmo para as doses muito fracas. Em outros termos, não há nenhum limiar de radiações aquém do qual o efeito é postulado como nulo.

Quando se lê o relatório do Fórum Chernobyl com atenção, descobre-se que as quatro mil mortes anunciadas foram calculadas, mediante o modelo linear sem limiar, sobre uma reduzidíssima parte da população mundial que as radiações afetaram: seiscentas mil pessoas, ou seja, cerca de duzentos mil "liqüidadores", 120 mil pessoas retiradas do local e 270 mil outras residentes nas zonas mais contaminadas. Quanto aos milhões de seres humanos também afetados, a estimativa oficial não se pronuncia a respeito, o que levou todo o mundo a concluir que a catástrofe não era responsável por nenhuma das suas mortes. O que é um passa-moleque do modelo.

Estive em Kiev, visitei o sítio de Chernobyl. Aí nos falaram da retirada dos 48 mil habitantes de Pripyat, a cidade vizinha da central nuclear, operação que só começou 36 horas depois da explosão. Entre essas pessoas deslocadas, quinze mil teriam morrido nos seis meses seguintes, empilhadas nos hospitais de Kiev. Insistiu-se sobre o caso trágico dos seiscentos mil a oitocentos mil liqüidadores, esses voluntários em geral forçados que limparam o sítio absorvendo as mais fortes doses, e dos quais não se sabe praticamente nada. Os que não morreram na catástrofe se dispersaram por toda a União Soviética, e nenhum estudo epidemiológico pôde ser praticado, nem neles nem na sua descendência.

A catástrofe de Chernobyl produziu uma radioatividade considerável: centenas de vezes mais matérias radioativas lançadas do que em Hiroxima. Médicos e geneticistas nos falaram longamente sobre os efeitos das doses fracas de radioa-tividade em dezenas de milhões de pessoas que vivem, bebem, se alimentam e se reproduzem em um meio contaminado: tumores cancerígenos, cardiopatias, fadigas crônicas, doenças inéditas e sentimento de desamparo afetam uma população imensa, e, no meio dessa, sobretudo crianças e jovens. E temem-se efeitos irreversíveis sobre o genoma humano.

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